a lua, lasca de tinta
quando a lua mingua ou cresce, só é possível ver um feixe curvado de brilho no céu, azul mansinho lá em cima, ainda rosa aqui embaixo, atravessado por nuvens e bandos de pássaros em fuga a um abrigo comum. mas se você olhar bem, ainda é possível ver o resto da lua, a continuação daquele feixe de luz que na verdade é círculo. como se a luz escapasse da fresta de uma porta sendo fechada ou de um olho mágico tapado quase de todo, por onde eu poderia espiar através da cúpula celeste que se impõe redonda sobre a Terra. de onde estou sentada, a lua é apenas buraco na parede ou lasca de tinta que se desprega de um quadro cada vez mais escuro. alcanço a mão em direção à falha e com a ponta da unha começo a arrancar pouco a pouco os pedaços desse quadro. se eu desfizesse a pintura do céu, certamente não sobraria nada sobre minha cabeça e restaria sobre mim o peso de inventar algo todo novo.